quinta-feira, janeiro 28, 2010

terça-feira, janeiro 05, 2010

Penso... logo resisto: o GIA e seus antídotos à mesmice.

Em novembro de 2008 o GIA participou do Nam June Paik Award, uma exposição que aconteceu em Colônia, na Alemanha (http://www.namjunepaikaward.de/gb/index.html)
O texto a seguir faz parte do catálogo, e foi mais uma contribuição de Alejandra Muñoz para o GIA.
O blog do projeto: www.provocativefragrance.blogspot.com

Por:
Alejandra Hernández Muñoz*


"Dois hamburgers... alface... queijo... molho especial... cebola, pickles e um pão com gergelim"... qualquer urbanoide brasileiro com idade acima de um dígito que tenha contato regular com uma televisão, reconhece a praga. Não precisa imagem. Sabemos o que significa... ou, pelo menos, reconhecemos seu grau de "ruindade" na cultura atual! Mas o que pode acontecer quando, numa linguagem gráfica popular como a dos cartazes do supermercado de seu bairro, é desmontado o slogan pegajoso acrescido dos preços médios dos itens cuja soma é bem inferior ao custo do sanduíche mais famoso do mundo ocidental? No mínimo... indignação!

Mas, isso é arte? Se não é, pelo menos essa é uma idéia que eu gostaria de ter tido. Uma das principais acepções da arte contemporânea é, precisamente, a de constituir uma referência para entender os valores cotidianos. Freqüentemente, o que a arte de hoje expressa prevalece sobre a sua aparência. Portanto, a obra deixou de ser um objeto concreto para ser uma posição donde ver o mundo. É o caso de Quanto (2003).

Em 2004, escrevi algumas reflexões sobre os trabalhos do Grupo de Interferência Ambiental (GIA). Desde então, o coletivo, formado por designers e artistas visuais vinculados à Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia (EBA-UFBA), tem consolidado uma trajetória que começa a apresentar algumas características singulares[1]. Das incipientes ações bem-humoradas no âmbito estudantil, a turma começou a aprofundar algumas questões e a trilhar caminhos de argumentação e discussão mais sólidos. As interferências no espaço público começaram a romper os limites municipais soteropolitanos, articulando ações em outros lugares do Brasil e disseminando seus efeitos sabe-se lá por que caminhos virtuais dos orkuts da vida. Seu modus-operandi continua sendo o acontecimento e a experimentação.

As propostas do GIA revelam um entendimento da obra de arte como entidade subjetiva, fragmentária, aberta e instável. Suas práticas bebem na fonte da arte conceitual na qual o estatuto da obra de arte como mercadoria é negado em favor de uma arte processual e, muitas vezes, efêmera, buscando uma reconfiguração da relação entre o artista, a obra e o público.

Trabalhos como Cama (2002) ou Pic-nic (2003), baseados na justaposição ou deslocamento de certos objetos comuns, lembram o “método paranóico-crítico de sistematização da confusão” tão utilizado por Dali para fazer diversas associações e inter-relações delirantes em suas obras. O delírio aqui não é ver uma cama e uma pessoa dormindo na praça, mas sim a indiferença da sociedade diante da cena cotidiana de pessoas que dormem na rua. No outro caso, uma cesta com comida sobre uma toalha estendida no chão à espera de comensais, provoca um estranhamento nos passantes que se confunde com o delírio dos famintos. Não cabe à arte apontar soluções para os problemas sociais mas sim incitar à reflexão e mostrar as contradições e os valores de uma sociedade. A intervenção no espaço público da praça, cenário das tensões urbanas, cumpre seu papel de revelar uma face do cotidiano que ninguém quer ver mas que todos sabem que existe.

Poder-se-ia dizer que o GIA resgata o velho conceito clássico de arte como mimese, imitação ou representação da natureza. Mas, que natureza é essa? É uma natureza midiatizada e cada vez mais artificial no cenário das grandes metrópoles. O GIA imita aquilo que vê todos os dias. Seu conceito de imitação, condição ambígua, em parte verdadeira e em parte falsa, opera coerente com a cultura heterogênea soteropolitana. Nesse sentido, o ativismo político do GIA busca inserção no contexto das dicotomias exacerbadas em escala mundial entre o rolo-compressor do capitalismo ilimitado e as resistências desesperadas de minorias que se opõem ao esmagamento.

Projetos como Caramujo (2002) e Não-Propaganda (2003), exploram o poder de apropriação e territorialização que pode provocar um pedaço de lona ou plástico amarelo colocado num espaço público. São as pessoas que dão uma utilidade ao Caramujo, seja como abrigo transitório ou como morada provisória, ou significado aos suportes vazios das faixas, cartazes e demais peças de Não-Propaganda.

O GIA questiona todas as convenções sociais possíveis, não através de discursos demagógicos, mas de práticas concretas e subversivas em sua essência. Suas intervenções questionam a natureza convencional do objeto artístico, encurtam a distância entre arte e cotidiano e, através do absurdo, re-propõem a vontade dadaísta de aniquilamento dos mecanismos artísticos tradicionais de produção de significados. Utilizando-se da provocação e da ironia, corroem o prestigio social e o valor mercadológico da obra de arte tradicional.

Em maio de 2008, a ação foi na Capela do Unhão, um dos espaços do Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM-BA). A proposta do QG (Quartel do GIA) foi um remake do QG montado em Madri no contexto da ARCO 2008. Enquanto o mercúrio fervilhava nos termômetros mercadológicos da feira internacional, o QG estimulava os neurônios a partir de idéias aparentemente tão inofensivas como deixar que as pessoas fizessem o que quiserem no espaço do QG ou estimular os visitantes a diversas atitudes no seu dia-a-dia mediante panfletos que rezam "Acredite nas suas ações".

Passei uma tarde no QG baiano. Surpreendeu-me encontrar um toldo amarelo logo no acesso: era um "caramujo" mas além disso, os GIAs tal vez não saibam, resgataram um velho copiar. O repertório de interferências e marcas que os visitantes deixavam era enorme: objetos, mensagens nas paredes, sonhos dormidos nas redes, horas de permanência no local assistindo a vídeos, conversando, jogando totó, ou ajudando na construção de uma plataforma flutuante de garrafas pet - objeto usado logo numa interferência na Baía de Todos os Santos. Havia algo de sagrado em tudo aquilo, e não precisamente pela ambiência de uma velha capela: numa época marcada pela banalização da violência, pela raridade dos encontros interpessoais e pelas relações movidas a consumo, era a convivência simples entre as pessoas que tinha virado a grande obra. Nada mais coerente com a estética GIA, baseada numa simplicidade despretensiosa, mas ao mesmo tempo irônica, que procura mostrar que a arte está indissoluvelmente ligada à vida.


* Alejandra Hernández Muñoz, uruguaia, residente em Salvador desde 1992, é arquiteta, mestre em Desenho Urbano e doutoranda em Urbanismo pelo PPGAU/UFBA. Desde 2002, é Professora de História da Arte da EBA/UFBA; tem diversos trabalhos de história e crítica de arte e arquitetura; foi curadora das mostras Pasqualino Romano Magnavita - 1946-2006: 60 anos de desenho de cidades (Galeria Cañizares EBA/UFBA, abr.2006), Visões do Labirinto (Casarão da EBA/UFBA, nov.2007) e, recentemente, da Exposição EBA 130 anos - Núcleo EBA Em Processos (Galeria ICBA, mar.2008), todas realizadas em Salvador.
[1] Atualmente integram o grupo: Pedro Marighella (1979), Tiago Ribeiro (1979), Mark Dayves (1984), Everton Marco (1981), Cristiano Piton (1978) e Ludmila Britto (1980).